#9. Primeiro eu tive que morrer
E ali, naquele quarto de hospital, eu confirmei o que tinha sentido 2 dias antes: primeiro eu tive que morrer. Não eu inteira. Mas parte de mim sim.
Título um pouco mórbido? Sim. Final feliz? Talvez. Continue lendo :)
Quem leu meu último texto ou me acompanha no Instagram (se não me segue, sinta-se à vontade para seguir aqui - instagram.com/paolazbehs), sabe que na semana passada eu me submeti a uma cirurgia para retirada de um mioma transmural, que possivelmente era um dos causadores das minhas perdas gestacionais.
O caminho até aqui me mostrou que a medicina tá muito mais para uma ciência subjetiva do que exata. Não há garantias. Fazer a cirurgia era eliminar um suspeito, uma hipótese, com uma boa chance de contribuir para o sucesso de uma terceira gestação, mas sem nenhuma certeza. E fazer ela também significaria que eu teria que esperar mais alguns bons meses antes de tentar engravidar de novo, o que foi um balde de água fria porque eu achava que estava pronta para tentar de novo, já.
Ainda assim, a decisão de fazer a cirurgia foi difícil mas óbvia. Eu entendi que havia um médico capacitado que havia visto meu útero por dentro e recomendado a extração. E, cansada que estava, não tive forças para lutar contra essa recomendação, nem para administrar o meu medo aumentado de uma terceira perda caso eu decidisse tentar antes da cirurgia, que também era uma opção.
A cirurgia foi agendada uns 10 dias antes dela de fato acontecer. Antes dessa jornada de maternidade começar, eu nunca tinha feito nenhum procedimento médico relevante, fora alguns pontos de machucados menores ou extração de sisos. Eu era a legítima cagona - e parte de mim ainda é. Não gosto de ver sangue. Fecho os olhos quando estou vendo algo na TV e aparece algo muito visceral. Tenho medo da dor. Em 1 ano, a cagona aqui já passou por 4 grandes procedimentos hospitalares, todos com anestesia geral 3 deles com bastante dor: 2 AMIUs (aspiração manual intra-uterina, a versão moderna da curetagem), uma histeroscopia (cirurgia de vídeo que entra no útero para avaliar a cavidade) e uma miomectomia (cirurgia de extração do mioma). Essa última, a mais complexa. Eu já estava um pouco mais acostumada depois dos procedimentos anteriores, mas logo quando agendei já senti que o furo seria mais embaixo.
De fato foi.
48h antes eu já estava uma pilha de nervos. Comecei a ter muito medo e muitos pensamentos repetitivos e obsessivos. Minha barriga seria cortada. Era uma cirurgia mais complexa. E se meu útero fosse perfurado ou comprometido de alguma forma? E se o mioma não saísse? E se algo desse errado? E se tivesse algum problema com a anestesia? E se eu morresse?
Entrei em uma noia enorme de que eu iria morrer. Fiquei muito, muito ansiosa. Até fiquei imaginando o que as pessoas diriam depois da minha morte: "coitada, passou por tanta coisa nesse último ano.. no Substack dela tem todos os registros". Meus textos de certo iria bombar depois da minha morte - rindo de nervosa rsrsrs. A nóia foi realmente grande. E eu ainda me questionava: nóia ou intuição? Tenho escutado cada vez mais minha intuição. E agora? Qual das duas será que estava atuando?
24h antes a equipe do hospital me chamou no whatsapp para dar instruções e me mandou por email os contratos e termos de responsabilidade, avisando que eu deveria lê-los antecipadamente para que no dia seguinte eu chegasse lá e só assinasse. Quem já viu esses termos sabe como eles são apocalípticos: você se responsabiliza por qualquer intercorrência diferente do planejado e exime o hospital das mesmas, incluindo a fatalidade da perda da vida. Pronto, a cereja do bolo para elevar ainda mais a potência da minha ansiedade e do meu medo de morrer.
Eu sei que isso tudo é procedimento padrão nos hospitais. Me considero uma pessoa inteligente. Mas quando a gente está no auge da ansiedade, a gente não raciocina direito. Lembrei de quando, em 2005 em um intercâmbio na Austrália, eu assinei um termo antes de uma aula de surf que dizia que caso eu fosse atacada por um tubarão eu não responsabilizaria a empresa das aulas. Pronto, serviu pra eu não curtir a aula e passar os 120 minutos dela nervosa olhando pra água e procurando qualquer sinal branco ou cinza de um peixe matador.
Essa sou eu. Ansiosa. Desde sempre.
Resolvi chamar meu médico e falar que estava com medo. Ver se alguma coisa que ele diria poderia me acalmar. Ele me ligou e atenciosamente tentou me tranquilizar, dizendo que faz essa cirurgia há muito tempo e há anos não tinha nenhuma intercorrência. Eu quis entender melhor os detalhes da cirurgia. Quanto tempo duraria? Ele explicou que duraria cerca de 2h30 - todos os meus procedimentos anteriores tinham sido de cerca de 45min - 1h. Esse tempo mais longo já assustou. Depois eu quis saber como seria a anestesia, se seria igual aos outros procedimentos. Ele me explicou que a anestesia era tranquila, que dessa vez eu seria entubada mas que nem iria perceber. Tranquila pra quem? Entubada nunca fui. Mais ansiedade.
Nesse dia eu estava trabalhando com a consultoria que fechei - e eu precisava trabalhar porque depois ficaria uns dias fora me recuperando. Tive duas reuniões à tarde que, ainda bem, me distraíram das minhas neuras. Consegui focar em algo diferente, que nesse momento foi importante.
Também tive a minha sessão de análise (gente, façam terapia). Obviamente o assunto foi meus medos e neuras. Eu estava inclusive com vergonha de dizer que estava com medo de morrer, pois me parecia dramático demais, quase infantil (quem nunca sentiu vergonha do próprio terapeuta?). Como se eu fosse uma garotinha assustada. Mas eu falei. Eu precisava colocar para fora. Tanto que to colocando pra fora até agora, aqui.
A sessão foi uma das mais produtivas dos últimos tempos. Aquelas que ficam ressoando na mente horas depois de acabar. E horas depois, eu consegui me tranquilizar um pouco.
Tranquilizei porque eu percebi que a) o medo era legítimo, eu não precisava ter vergonha dele; e principalmente que b) parte de mim já tinha morrido. A parte que precisava morrer. Provavelmente não seria naquela hora que a outra parte iria partir.
Percebi que primeiro eu tive que morrer. Me veio essa frase na mente, título de um livro que eu li há uns 2 anos (acho), que me foi presenteado em uma época que eu não vinha lendo muito, como um incentivo à leitura e a reflexão, dado de presente pela Mari, uma pessoa especial que trabalhava comigo na época e conhecia minhas angústias. O livro é o romance de estreia de uma escritora cearense, Lorena Portela, e conta a história de uma publicitária esgotada física e mentalmente, consumida pelo estilo de vida adotado e admirado pela nossa atual sociedade. Ela decide se isolar em uma praia do Nordeste (Jeri) por 2 meses para repensar sua vida. E nesse processo, ela se redescobre. Encontra novos caminhos de vida. O livro é potente mas leve, rapidinho de ler, e recomendo muito - (vejam ele aqui nesse link).
Três décadas de vida e eu já tinha me maltratado o bastante para ter que parar. Ou morrer.
(Lorena Portela, em “Primeiro eu tive que morrer”)
Eu li esse livro, gostei dele na época, mas ele ficou esquecido na minha mente. Do nada, após essa sessão de terapia, ele voltou para o meu pensamento como um foguete. E eu percebi que eu também, primeiro tive que morrer.
Quando eu engravidei pela primeira vez, em setembro do ano passado, eu vinha de anos de trabalho insano. Era a clássica workaholic. Mas já tinha consciência que precisava fazer mudanças. Estava tentando desacelerar - tinha entrado em uma empresa nova fazia alguns meses, com uma proposta de ser um ambiente de trabalho mais leve e mais propício a uma gravidez e posterior maternidade. Não foi. Foi uma decepção. O ritmo e a pressão eram muito intensos, o trabalho que deveria ser de três pessoas era feito por uma, a liderança era masculina e havia pouco entendimento sobre questões femininas ou de maternidade. Eu perdi meu bebê e tirei meros 2 dias de folga, após a AMIU. Todos os outros dias mais intensos do luto continuei trabalhando 10, 12, 14 horas por dia - e a expectativa das minhas entregas era a mesma que se eu não tivesse passado por nada daquilo. É verdade que por lei eu tinha 15 dias de licença, e a empresa me ofereceu tirá-los. Eu que senti que não poderia. A Black Friday estava chegando. Eu tinha que liderar o time que iria preparar toda a estratégia e não podia deixá-los na mão. Esse era o meu sentimento - colocar a empresa e o time à frente de mim mesma. Claro, essa decisão é responsabilidade minha, mas dentro de um sistema que simplesmente não nos deixa parar.
Hoje, quase 1 ano depois, essa Paola não existe mais. Essa Paola morreu. Ainda bem que ela morreu. Eu não aceitaria mais algo assim. Hoje eu gosto mais de mim, me priorizo mais, e espero encontrar um caminho que seja diferente, mais compassivo e humano.
Engravidei de novo quando estava no meu último mês nessa empresa. Quando perdi, já não estava mais nela. A condução do meu luto e dos procedimentos pós segunda perda foram completamente diferentes. Eu me permiti ter tempo e espaço para elaborar aquela dor excruciante pela segunda vez. E ter me dado essa permissão fez com que a segunda perda fosse processada de uma maneira muito mais humana e justa comigo mesma.
Meu primeiro bebê me mostrou o amor de mãe. Aquele amor incondicional clichê. E me aproximou de Deus e do espiritismo. Me mostrou o poder da fé e como eu precisava passar a escutar mais a minha intuição. Ser mais feminina e menos masculina. Mais ying e menos yang.
Meu segundo bebê, minha filha, me mostrou quem eu não queria mais ser. A pessoa que não para. Que não pode parar. Que não consegue parar. Que eu precisava parar de querer controlar tudo. E que eu não precisava ter tanta pressa.
Esses bebês morreram, e levaram consigo partes de mim que também precisavam morrer. Deram espaço para uma Paola nova renascer. Aquela Paola antiga precisava morrer para que uma nova, melhor, pudesse viver. Uma Paola muito mais espiritualizada, muito mais auto-consciente, muito mais cuidadosa e generosa consigo mesmo, com muito mais amor próprio. Por isso tudo, sou imensamente grata aos meus dois primeiros filhos.
Ter percebido isso nas 24h anteriores à cirurgia me ajudou muito a acalmar. Eu percebi que na verdade tudo estava a meu favor. Que a parte que precisava morrer já tinha morrido. E que tudo indicava que agora não seria a minha hora. Que aquela cirurgia significava muito mais vida do que morte.
Eu também rezei bastante, fui ao centro espírita, e na manhã da cirurgia fiz uma sessão longa de meditação. Fui para o hospital um pouco mais tranquila, com o medo bem mais controlado. Torcendo mais que tudo pra dar tudo certo.
E deu tudo certo. Soube disso quando o médico me acordou, pelas 18h daquele dia. Respirei aliviada, mas ainda sob efeito da anestesia e sem processar direito. Também tinha meu celular lotado de mensagens de amigos queridos que tinham desejado uma boa cirurgia. E tinha meu marido ali comigo. Tanta gente torcendo por nós. Tanta gente que torcia pela vida e não pela morte. Chorei com um mix de alívio e emoção.

Fui respirar ainda mais aliviada quando acordei no dia seguinte, no quarto do hospital, e o médico me visitou e contou detalhes de como foi. A cirurgia na realidade durou 1h30, 1h a menos do que o previsto, porque o mioma se soltou muito fácil. Parecia que ele queria sair, disse o médico. Ele também disse que tinha quase 100% de certeza de que o mioma estava sim impactando as minhas perdas, e que agora minha próxima gestação tinha tudo pra dar certo. Também me mostrou fotos do mioma e da cirurgia. O mioma tinha o tamanho de uma laranja. Ele era bem assustador e fiquei aliviada dele não estar mais dentro de mim. Olhar para aquilo me deu mais segurança de que algo assim deveria mesmo estar me atrapalhando e que agora o caminho ficaria mais livre.
Isso fazia 12h da cirurgia, eu não tinha nem levantado da cama ainda, estava com uma sonda para fazer xixi e medicada com morfina para as dores que já estavam fortes. Ainda assim, eu fui tomada por uma paz interior. A maior paz que já senti desde que todo esse processo começou. Eu agradeci a mim mesma por ter vencido meus medos, minhas noias e ansiedades, e ter escutado a minha intuição. Agradeci por não ter tido pressa - a Paola do passado provavelmente não toparia esperar 6 meses para recuperação antes de tentar engravidar de novo. A Paola que tomou a decisão da cirurgia era a Paola transformada pelos seus dois anjos.

Eu ainda não tenho garantias, mas tenho mais paz. Mais confiança.
E ali, naquele quarto de hospital, eu confirmei o que tinha sentido 2 dias antes: primeiro eu tive que morrer. Não eu inteira. Mas parte de mim sim.
Talvez eu esteja também me antecipando. Usar o "tive" parece que significa que eu já cheguei em um futuro em que sim, tudo deu certo, que pra mim significa parir um bebê saudável. Ainda assim, estou buscando cada vez mais vibrar na fé e menos no medo. Acreditar que esse momento vai chegar. Manifestar os meus desejos para o universo.
Nem toda parte de mim que precisa morrer morreu, ainda. Perfeccionista que sou, minha tendência é querer ter toda a situação ideal e perfeita sempre. Eu ainda era / sou aquela pessoa por vezes ansiosa e nervosa, como mostram todas as cenas do meu pré-operatório que relatei. Talvez seja esse o traço da minha personalidade mais difícil de mexer. E eu não acho que serei uma mãe zen - quem sabe em uma próxima encarnação rsrsrs. Mas o que eu puder melhorar nesse sentido até meu bebê chegar tenho certeza que será melhor, para mim e para ele (ou ela). E tenho certeza que minha versão de hoje, setembro de 2023, já é muito melhor que minha versão de setembro de 2022.
O pós-operatório está sendo dolorido mas necessário e dentro da normalidade. Aquela confiança que eu senti no dia seguinte à cirurgia já diminuiu um pouco, confesso. O medo já voltou a marcar presença em alguns momentos (e se mesmo assim não der certo? e se eu perder de novo? será que eu aguentaria?). O medo constante é uma das consequências mais cruéis para mulheres que passam por perdas gestacionais. É como se nossa ingenuidade se perdesse, e a possibilidade de uma gravidez linda e leve seja excluída para nós. Será que eu consigo fazer diferente? Queria muito conseguir.
O luto não é linear. A vida não é linear. Nem fácil. Como diz uma grande amiga, a vida é muito mais difícil que fácil. E no meio disso tudo a gente vai vivendo. Com coragem. E com amor. Como disse Lorena Portela em seu livro, “quanta coragem existe em alguém tão pronta para o amor?”. Em mim, muita.
Se eu achei que meu medo pré-cirurgia era um pouco infantil, de uma maneira negativa, acho que agora eu posso usar de uma maneira positiva uma crença infantil de que o pote de ouro está sim lá depois do arco-íris. Meu arco-íris vai chegar. E quando chegar, espero que goste da mãe que ele vai encontrar por aqui. Uma mãe que renasceu do luto e da dor, que matou parte dela para viver uma vida que faça mais sentido.
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Oi Paola!! Me emocionei muito lendo teu texto de hoje! Me identifiquei de MUITAS formas e teve algumas frases que parecia que tu tava botando uma escuta na Anielly de janeiro.. printei muitos trechos pra reler! O mais importante disso que tu faz de te expor e escrever as etapas que tu tá vivendo é que o luto do aborto é um sentimento de muita solidão, e, apesar de não desejar nunca pra ninguém nada que eu passei (e que tu também tá passando), é um pouco menos angustiante saber que não estou sozinha!
uma caminhada cheia de coragem e aprendizado! Casa passo tem um propósito que vamos entendendo pelo caminho! Mais um texto lindo e inspirador! beijinhos de uma amiga orgulhosa