#2. O luto não é linear
Tem dias que a gente consegue estar bem, sorrir e que pensamos "vai passar". E tem dias que sair da cama é a tarefa mais difícil do universo e que só pensamos "meu Deus nunca vou sair desse buraco".
Dia 17/03 eu saí do meu último emprego.
Dia 26/04 eu fiquei sabendo que tinha perdido meu segundo filho.
Dia 10/05 eu me submeti ao procedimento de AMIU (aspiração manual intra-uterina), a versão moderna da curetagem.
Dia 14/05, meu primeiro dia das mães, eu lancei esse canal no Substack para falar do meu processo de luto e lutas. E foi lindo :)
Nesses cerca de 15 dias, tanto já aconteceu também, com tantas emoções diferentes envolvidas:
❤️ Receber muitas mensagens e comentários elaborados no meu último texto, dizendo que fez sentido;
🙂 Encontrar amigas de colégio, algumas que não via há alguns anos;
🥺 Ter resultados inconclusivos de exames;
😐 Descobrir que duas pessoas muito próximas estão grávidas;
🥰 Ir em uma palestra sobre auto-amor e gentileza com a minha mãe e minha irmã mais nova;
😰 Ter uma conversa dura com meus pais sobre como estou me sentindo, buscando compreensão;
😍 Fazer uma limpeza de pele e comprar novos produtinhos de skincare;
😢 Abrir os olhos de manhã e já estar chorando;
🙂 Olhar uma série sobre luto com meu marido e me sentir bem (Falando a Real, na appleTV);
😰 Não conseguir sair do sofá e da cama um dia inteiro;
😃 Ir no Disney on Ice com a minha irmã e meu sobrinho;
❤️🙏 Receber um presente lindo de amigas queridas após um momento de aflição;
😢 Ter uma crise de choro no meio da rua;
🙏 Recusar uma entrevista de emprego mas com coração tranquilo sabendo que não é o momento.




Se tem uma coisa que eu aprendi nesse processo é que o luto não é linear. Nem um pouco linear, na verdade. Tem dias que a gente consegue estar bem, sorrir, eventualmente até gargalhar e que a gente pensa "vai passar". E tem dias que sair da cama parece a tarefa mais difícil que já nos foi apresentada e que a gente pensa "meu Deus nunca sairei desse buraco". Na verdade, muitas vezes a não linearidade do luto se apresenta no mesmo dia: uma manhã que não conseguimos levantar, uma crise de choro no meio dia, um final de tarde em paz e tranquilo lendo um livro. Eu nunca sei quando virá algum gatilho que poderá desencadear um momento de tristeza. O que eu estou me propondo fazer nesses casos é deixar vir - algo que eu não fiz depois do meu primeiro aborto (até porque não tive tempo e espaço para isso). Chorar tudo que eu tiver que chorar. Ficar triste. Me acolher. Rezar. Ir no centro espírita. Desabafar, colocar pra fora. Falar. Escrever. Não engolir nada. Sentir. O que tiver que ser sentido.
Acolher o indesejável, como diz o livro de mesmo nome de Pema Chödrön, uma autora budista (percebam que estamos aceitando várias crenças e religiões). Comecei a ler esse livro recentemente e ele traz o quanto é importante a gente poder e se permitir sofrer (e estou pensando em fazer uma resenha desse livro, quem sabe saia em um próximo texto).
Quando estamos em sofrimento, nosso ímpeto é tentar apaziguar e diminuir. Queremos sair daquela situação, acabar com aquela dor. E isso acontece também muito com as pessoas próximas da gente. Muitas vezes elas querem tentar resolver por nós. Trazer a solução. Fazer a gente seguir, de um jeito ou de outro. Eu tenho enfrentado um pouco isso na minha família, especialmente com meu pai, que tem tido dificuldade em lidar com o meu sofrimento. Eu entendo, a nossa dor muitas vezes é a dor de quem nos ama também. E dói neles nos ver sofrendo. Mas aprendi que muito mais importante do que agir, é sentir. Elaborar. Muitas vezes, falar, e ser escutado. Sem julgamentos. E com isso, tentar se curar.
Entre esses poucos meses, semanas e dias, tanto aconteceu.
Tanta dor eu senti.
E, graças a Deus, tanto acolhimento eu tive. De mim mesma e de pessoas queridas à minha volta.
Alguns dias após a minha Amiu era um domingo à noite e eu estava conversando com meu marido e ele estava preocupado pois no dia seguinte ele voltaria "à vida normal", de trabalho e poderia se distrair com isso, enquanto eu teria que ficar em casa sozinha com a minha dor. Eu só pensei: a última coisa que eu gostaria agora era de trabalhar. Ser produtiva. Me forçar a "focar". E eu expliquei pra ele que na verdade estava grata por não estar trabalhando e estar tendo esse tempo e esse espaço para elaborar o que eu passei. Um tempo exclusivamente meu e sem ter um trabalho me demandando nada.
Depois da minha primeira perda, eu não parei. Eu descobri que tinha perdido meu primeiro filho ou filha em uma sexta-feira, chorei no final de semana e na segunda estava lá, trabalhando, entregando, sendo cobrada por metas e resultados. Mas pelo menos ali eu já percebi que eu precisava me abrir e isso não era um fato a ser escondido: na segunda-feira eu chamei meu chefe para conversar e expliquei o que tinha acontecido (ele não sabia que eu estava grávida, então contei direto sobre a perda, o que foi bem difícil) e avisei que a qualquer momento eu poderia ter que me ausentar, pois passaria por um processo de tentar expelir meu bebê naturalmente. Ele entendeu e não soube o que falar, o que é natural, ainda mais de um homem. Também avisei meus dois liderados diretos do que estava acontecendo, pois achei que seria bom eles saberem que eu poderia estar com a energia mais baixa nos dias seguintes. Eles se emocionaram comigo e foram bastante compreensivos. Desde aquele momento, eu comecei um processo de me colocar vulnerável.. Mas foi só o comecinho. Eu ainda tinha (e tenho) muito a aprender sobre isso, mas acho que já evoluí bastante desde então e tenho orgulho disso.
Eu não consegui expelir naturalmente, e acabei fazendo a AMIU cerca de 25 dias depois. 25 dias dificílimos, em que eu me sentia em um limbo, pois ainda tinha meu bebê comigo, mas sem vida e sem saber quando aquela situação iria se resolver. E nesse limbo, eu tentei trabalhar naturalmente - tentei, pois a cabeça muitas vezes não estava ali. Depois da Amiu, eu parei por 2 dias. Eu tinha direito a uma licença de 14 dias, mas eu não usei. E isso por decisão minha - a empresa até me deixou livre caso eu precisasse ou quisesse ficar mais tempo fora. Eu achei que, dado o momento que a empresa e meu time passavam, eu não poderia me ausentar por tanto tempo. Era o pré Black Friday e tínhamos muita coisa pra deixar pronta. Vínhamos de alguns meses difíceis de vendas e aquele era o momento de recuperar. E eu considerei que a empresa era mais importante que a minha saúde mental e meu estado emocional.
Hoje me arrependo tanto disso. Acho aquela Paola de outubro de 2022 tão ingênua. Talvez se eu tivesse me dado pelo menos aquelas 2 semanas permitidas, eu teria processado tudo aquilo melhor - não que fosse fazer um milagre, mas sei que teria sido melhor. Eu acho que eu fui muito rápido do primeiro para o segundo bebê. Era um desespero para preencher aquele vazio.
Agora, após esta segunda perda, eu vejo que, estando trabalhando, tudo isso é mais difícil. Pois, reforço, o luto não é linear. E ter que fazer algo que a gente não quer ou se forçar a focar em algo produtivo em um momento desses é uma missão muito, muito difícil. Claro que eu sou muito privilegiada por poder não me preocupar com o lado financeiro nesse momento e sei que isso não é a realidade de muitas mães. E aí questiono: a lei permite 14 dias de licença após uma perda gestacional. Mas o que conta como a perda? O momento que se descobre que não existe mais um coração batendo? Ou o momento que se expele ou fazemos a curetagem? Como a indicação médica habitual atual é de esperar 30 dias para expelir, uma mãe tem que escolher quando tirar essa licença: se é logo que descobre e está muito, muito triste, ou depois de fazer o procedimento, que pode estar debilitada fisicamente e ainda muito abalada emocionalmente. Algumas mulheres conseguem passar de uma etapa a outra de forma rápida, outras ficam 30/45 dias só para encerrar a parte física. E ter só 14 dias de licença para administrar tudo isso não me parece justo nem suficiente. Mais um ponto em que o mundo e o mercado não me parecem estar preparados para nos acolher.
Eu saí muito fraca do hospital nesta segunda amiu, inclusive anêmica devido a todo o sangramento que eu tive lá, com o hemograma completamente alterado. E eu sangrei por quase 20 dias. Recém estou começando a me sentir um pouco mais forte fisicamente. Na semana passada, voltei para o Crossfit. Bem de leve e com muito menos peso do que antigamente e não indo todo dia como antes, mas voltei. E só de voltar me senti bem e orgulhosa de mim mesma. Estar lá e cuidar do meu corpo me faz bem.
Além disso, comecei aos poucos a voltar a ter uma rotina alimentar mais saudável. Desde a perda, eu tive muitos episódios de comer emocional, de "eu mereço" (que pra mim normalmente envolvem doces). E me permiti esses episódios, sem culpas. Mas também estou aos poucos voltando a preferir ter chocolate meio amargo em casa e cozinhando uma que outra comidinha saudável como uma tilápia assada que eu gosto e que me deixa satisfeita pela sensação de estar alimentando meu corpo e não só minhas emoções. Para mim, comer sempre teve um componente emocional, eu sofro há anos de efeito sanfona, já me culpei demais e tive pouco auto-compaixão comigo em relação a isso. Com ajuda da minha psicóloga e da minha nutri tenho melhorado nesse sentido e estou tentando voltar a ter mais cuidado e consciência na alimentação, mas sem cobranças.
Como eu tenho ocupado meus dias? Descansando muito (estou dormindo bem, e cerca de 10 - 11h por dia), com muita leitura (em breve quero trazer mais disso aqui também), algumas idas ao Crossfit ou à academia do meu prédio e muitas idas ao centro espírita (estou indo 3, 4 vezes na semana). Na semana passada um dia fiquei lá 2h quase ininterruptas chorando. E saí de lá melhor do que entrei. Eu nunca busquei tanto por Deus. E nunca briguei tanto com Ele também. Tenho pedido muito a Ele para me ajudar a seguir no caminho da fé, pois se eu não tiver ela, entendo que não me resta nada. Muita gente para me consolar me fala que tem certeza que eu vou conseguir ter uma gestação saudável, que vou parir bebês vivos, que minha hora vai chegar… Às vezes eu acredito, outras vezes o medo disso não acontecer toma conta. E aí eu tenho pedido a Deus que me ajude a acreditar. Eu preciso acreditar que minha hora vai chegar. No último sábado, eu pedi um sinal. Que Ele me mostrasse que estava comigo. E que eu não precisava ter medo.
Na última segunda-feira o dia começou muito mal. Segundas tem sido dias difíceis pra mim, em que eu fico mais sozinha e reflexiva. Depois de um final de semana com meu marido e família, de fato acontece o que ele comentou receoso algumas semanas atrás: eu fico sozinha com a minha dor. E apesar de entender que isso é necessário, nem sempre é fácil. Então eu já estava triste e com a energia baixa, tinha chorado bastante pela manhã.. E em torno do meio dia minha campainha tocou com um presente lindo de um grupo de amigas especiais: eram dois anjinhos de porcelana, alguns chocolates deliciosos, um vale massagem momento relax e uma carta linda, que falava sobre o quanto elas queriam que eu e meu marido nos sentíssemos amparados e como elas reconheciam a importância dos nossos dois anjinhos (e esse reconhecimento é fundamental). Foi um presente cheio de significado. E em um timing que só Deus explica. Era o meu sinal. Meu coração se encheu de gratidão. Me senti muito amada. Na situação em que estamos, na maior parte das vezes não existem palavras, então o que nos ajuda é sentir. Sentir o amor. E o amor de amigas tão acolhedoras e cuidadosas como essas não tem preço.


Na semana passada, eu também tive que lidar com uma situação bastante desafiadora: descobri que duas pessoas muito próximas estão grávidas. E o sentimento envolvido é muito ambíguo: eu fico feliz por elas, do fundo do coração. Sei que vou amar muito esses bebês que estão vindo e que eles farão parte da minha vida e isso é ótimo, mas eu também fico com inveja. Isso mesmo, inveja. Esse sentimento considerado tão feio por muitos, mas que é tão humano. É inegável que eu também queria estar grávida, e ter uma gravidez saudável, como estão sendo as delas. Mas o meu momento por algum motivo não chegou. Está doendo ter que encarar isso tão próximo da minha última perda. Eu estava ali ainda sangrando pós amiu e estava sendo forçada a lembrar que o que elas têm, eu não tenho, por mais que eu queira. Essa lembrança constante tem doído, mas eu preciso aceitar também isso, por mais que doa. Uma criança sempre será uma benção.
Além disso, eu comecei a receber também contatos profissionais, inclusive de uma recrutadora para uma vaga de marketing que seria a "minha cara" (ou a cara da Paola de antes de 2022). Ela queria entender o meu momento. Expliquei que não estava trabalhando mas que tinha passado por dois abortos e não me sentia pronta para processos seletivos e que na verdade, nem sabia se eu voltaria. Que estava reavaliando minha carreira. Ela me respondeu agradecendo por eu ter sido sincera, reforçando que entendia que esse era o momento de eu cuidar de mim e desejando que eu ficasse bem. Sugeriu uma conversa mais pra frente, talvez em julho. Me senti bem ao abrir isso para uma pessoa estranha, do universo profissional, e também ser acolhida. Não tenho dúvida do fato dela ser mulher ter feito a diferença nisso.
E de novo, ser acolhida e eu me acolher tem sido chave nisso tudo. E dentro disso faz parte tentar ter "uma vida normal". Consegui curtir o aniversário da minha irmã mais nova, fui com meu sobrinho e irmã mais velha no Disney on Ice, encontrei algumas amigas queridas do colégio que não via há anos. Todos momentos bem legais e que me tiraram um pouco dessa atmosfera de dor. Dentro disso, também resolvi, junto com meu marido, fazer uma viagem, que tem ocupado também meus dias com planejamento e me deixado empolgada - no próximo texto devo contar mais sobre isso. Viver essas coisas também tem sido importante.
Tem um vídeo que eu gosto muito que fala de luto, que eu conheci após a primeira perda. Ele mostra que, em um primeiro momento, o luto toma conta de tudo na sua vida. Fazer qualquer coisa se torna difícil. Se representa isso com um círculo, em que o luto permeia o o círculo interno. Ao longo do tempo e bem aos poucos, a partir de muito acolhimento, nossa vida vai crescendo ao redor da dor. O luto permanece ali sempre, mas outras coisas voltam a ganhar importância e a proporção relativa da dor diminui. Isso pra mim faz muito sentido e é o que tenho buscado.
Por último mas não menos importante, eu e meu marido temos ido a vários médicos para nos apoiar na investigação do nosso caso, e feito vários exames. E no último domingo, tivemos um resultado de um exame que para mim foi muito significativo: o resultado do cariótipo dos restos fetais do nosso bebê. Esse cariótipo confirmou um feeling muito forte que eu tinha: era uma menina. Ao longo da vida eu sempre me enxerguei como mãe de menino, mas nessa segunda gravidez eu sentia isso muito forte que era uma menina. Ter isso confirmado e meu feeling de mãe validado me deixou muito feliz. Eu teria uma menina que poderia me acompanhar nas minhas lutas feministas. Além disso, ela foi considerada uma menina geneticamente "normal", com 46 cromossomos, ou seja, a princípio não tivemos problemas genéticos com o feto, o que também me tranquiliza um pouco, pois problemas genéticos me parecem um tanto quanto assustadores. Só tem alguns poréns, pois existe risco de alguma contaminação com as minhas células, pois eu mesma sou uma "menina normal". Mas eu decidi ter fé de que meu feeling estava sim, certo. Nesse momento, eu tenho tão pouco de bom a me apegar. E isso é algo bom e eu não vou soltar.
Esse foi um dia bom do meu luto e da minha luta. Eu sou uma orgulhosa mãe de menina!
Até logo e obrigada por estarem comigo!
Ps: acho que dessa vez o próximo texto não demora tanto e deve vir antes da nossa viagem, que será dia 14.. Enquanto isso, me contem o que acharam desse e me mandem feedbacks pra eu ir melhorando. Sou novata nesse mundo e qualquer feedback ou sugestão é super bem vinda!
Acolher o nosso processo de dor é muito importante. Deixar a nossa vulnerabilidade amostra não é sinal de fraqueza. Fomos ensinadas por mulheres fortes que devemos lutar pelos nossos direitos, sonhos.... mas sem esquecer jamais da nossa doçura, resiliência e paciência. Paciência, tempo....duas palavras que neste momento são tão importantes para o teu processo de luto, de reconhecimento de quem você é, para onde você vai.... Desfrute deste "time" sem culpa. No tempo divino as respostas vem. Escrever é terapia. Continua! Beijos
Como mãe de 3 mulheres maravilhosas, que fazem muita diferença na minha existência, me dói muito sentir e estar junto nesse processo. Não tem como fazermos trocas de posições que venham a minimizar tamanha dor. Também sou avó de 4, que maravilhoso.
Paola, filha do meio, a pessoa mais transparente e inquieta que já conheci.
Sou fã de longa data. Desde as estrelas no céu.
Sigamos todas nós, com infinitos papéis, a caminhada que se apresenta todo dia.
Bjs