#15. A pressa é inimiga da elaboração
A verdade é que a pressa até pode ser amiga da conclusão, mas ela é inimiga da elaboração. E tudo que a gente não elabora, não discute, não nomeia, vira trauma. Ou ansiedade.
Era uma sexta de manhã de novembro. Eu tinha recém acabado uma reunião de trabalho, da consultoria que estou prestando. Uma reunião tranquila, nada de tensões ou conflitos. Depois dela, eu tinha a tarde cheia de compromissos e coisas para resolver na rua.
Não consegui cumprir com nada do planejado.
Nos dias anteriores eu tinha começado a sentir alguns formigamentos no corpo todo e estava achando aquilo estranho, mas tinha também recém começado a fazer fisioterapia após romper os ligamentos do pé esquerdo e achei que podia ser por isso.
A reunião acabou e eu senti os formigamentos mais fortes, meus braços moles e o coração acelerado. Muito acelerado. Olhei no Apple Watch e marcava 130 bpms sentada, em repouso. Imediatamente, pensei: "eu vou morrer.. mas eu não vou morrer em casa, eu vou pro Moinhos (hospital de Porto Alegre) pra morrer lá". Estava sozinha, chamei um Uber. No caminho liguei para o Thiago, meu marido, expliquei o que estava acontecendo. Quando desliguei, o motorista do Uber falou "moça, não vai infartar aqui", o que obviamente não ajudou em nada.
Cheguei na emergência, falei que estava com formigamentos e com a frequência cardíaca alterada. Eles me atenderam muito bem e me passaram imediatamente para checar os sinais na triagem. Estava com a pressão um pouco alta, e eu costumo ter pressão baixa. Me encaminharam pra fazer um eletrocardiograma, que, ainda bem, resultou normal. A partir desse resultado e cerca de 30min depois de ter começado a crise, eu consegui me acalmar um pouco. Pensei que talvez não fosse morrer, mas que tinha alguma outra coisa séria acontecendo e eu precisava descobrir o que era.
Como o eletro não teve alterações, me passaram para consulta com a médica clínica. Ela desconfiou que eu pudesse estar desenvolvendo uma trombose, pois com a função do ligamento rompido do tornozelo e a perna esquerda ficando mais parada, somado à questão de eu ter trombofilia, trombos eventualmente poderiam se formar. Ela pediu exames de sangue e uma eco-doppler da perna. Nenhum dos dois acusou nada, e a trombose foi descartada. Depois de cerca de 4h no hospital, muito nervosismo e a agenda do dia cancelada, fui liberada com o diagnóstico de que eu teria tido uma crise de ansiedade.
Não sei se fiquei aliviada com essa informação. Não sabia como lidar com ela e os formigamentos seguiam ali.
No dia seguinte, tivemos uma festa de família, a feijoada do Miguel, para celebrar a chegada do meu novo sobrinho. Lá bebi espumante, que eu estava há mais de 30 dias sem beber em função de dieta. Relaxei. Curti o dia. Não tive mais formigamentos. Esqueci das ansiedades e pensei que a crise havia sido um episódio pontual, talvez pela função do meu pé.

Passei a semana seguinte relativamente bem. No domingo à noite, eu estava indo dormir, sozinha. Meu marido estava trabalhando em um evento. Ao me direcionar para a cama, me bateu novamente o mesmo desespero. Senti o coração acelerando. Fiquei super agitada. Pensei "ah tá, não morri semana passada, mas agora sim eu vou morrer". Liguei para o meu marido e pedi que ele viesse para casa. Ele disse que viria, e eu sabia que demoraria cerca de 20min para chegar. Eu pensei: "preciso aguentar pelo menos 20min antes de morrer". Mas também pensei: "calma, Paola, talvez seja só mais uma crise". Fui para o Google: o que fazer em uma crise de ansiedade.
Não conseguia absorver direito as informações, mas algo que eu entendi era que recomendavam tentar mudar a temperatura do corpo, tomar um banho frio. Percebi que eu não conseguiria me coordenar para isso, então peguei uma bolsa térmica que tinha no freezer e fiquei caminhando com ela ao redor do apartamento, de um lado para o outro. Também fiquei tentando contar respirações e ver se com isso me acalmava, mas não estava funcionando. Eu estava me agitando cada vez mais. Ficava checando os batimentos no relógio: 90, 95, 110, 120; e com isso obviamente eu ficava cada vez mais nervosa. Achei que não iria mais aguentar, liguei de novo para o Thiago e disse que precisaríamos ir ao hospital assim que ele chegasse. Desliguei e fui tirar o pijama e colocar uma roupa para isso, e não conseguia nem pensar no que colocar. Peguei a primeira coisa que vi na frente.
Thiago chegou, me abraçou forte, falou que estava tudo bem, que eu ia ficar bem. Acho que ele tinha esperança de conseguir me acalmar e evitar a ida ao hospital. Acho que eu mesma também tinha essa esperança. Mas era mais forte que nós e que aquele abraço. Eu estava muito agitada, com calafrios, tremendo. Já passava da meia noite e eu não via forma de sair daquele estado.
Acho que ele tinha esperança de conseguir me acalmar e evitar a ida ao hospital. Acho que eu mesma também tinha essa esperança. Mas era mais forte que nós e que aquele abraço.
Chegando no hospital eu estava ainda mais nervosa do que na primeira vez. Mais uma vez fui bem atendida e me passaram rápido pela triagem. Na hora de fazer o eletro a enfermeira quase não conseguiu auferir o resultado de tanto que eu tremia. No meio do exame eu ainda checava os batimentos no relógio, bastante descontrolada. A enfermeira então me pediu licença para retirar o dispositivo de mim, alegando, com toda a razão, que ele estava me deixando pior. E mais uma vez, o resultado do ECG deu normal e eu fui encaminhada para atendimento com uma médica clínica.
Ela viu que eu tinha estado ali 10 dias antes em situação semelhante e falou: "eu não vou te pedir novos exames, ao que tudo indica você está tendo mais uma crise de ansiedade". Quando ela falou isso, eu desabei. Chorei compulsivamente por alguns minutos. Eu só pensava "ah não, não acredito que terei que administrar mais isso". Ela então me encaminhou para tomar um calmante e recomendou que eu buscasse apoio psiquiátrico.
Voltei para casa sentindo que tinha caído mais uma bomba e sabendo que aquela primeira crise não tinha sido um caso isolado, como eu tinha imaginado inicialmente. Eu, que sempre fui uma pessoa ansiosa, tinha chegado no auge da ansiedade e agora tinha essas crises terríveis.
O dia seguinte da segunda crise foi como se eu estivesse com uma ressaca das brabas. Eu me sentia acabada e muito triste com a situação. Achava que não teria energia para lidar com mais esse desafio. Só que, mais uma vez, eu não tive opção a não ser ser forte e enfrentar.
Tive uma sessão de análise naquele dia. No início, eu simplesmente não conseguia falar nada. Só de pensar na crise eu paralisava, formigava, me agitava. Me dava muito medo de reviver o momento. Então ao invés de falar, eu chorei. Chorei muito.
Eu me sentia indefesa. Sem poderes. Sem conseguir elaborar o que estava acontecendo. Não conseguia falar. Nem escrever. Por isso eu dei uma sumida aqui desse canal. A realidade estava tão dura que eu não consegui escrever sobre ela, nem sobre qualquer outra coisa, enquanto estava no meio desse turbilhão.
Uma das coisas mais difíceis para mim está sendo entender o porquê essas crises estão acontecendo. Busquei estudar um pouco sobre. Descobri que, segundo psicólogos, as crises de ansiedade acontecem com algum motivo mais claro, como resultado do medo ou da antecipação a algum fato ou situação (ex: medo de andar de avião, de falar em público ou de lugares muito cheios). Já os ataques de pânico acontecem meio que "do nada", sem um gatilho específico. E eu percebi que era isso que estava acontecendo comigo.
Além disso, eu já tinha um pouco de experiência acompanhando essas crises de fora, com uma pessoa próxima que já passou por situações semelhantes. Eu tinha uma pequena noção de como elas são duras, mas vi que, saber mesmo, a gente só sabe quando vive. O desespero ao passar por essas crises é algo surreal. Parece que a gente sai do corpo e fica do lado de fora, como um espectador da própria morte.
O desespero ao passar por essas crises é algo surreal. Parece que a gente sai do corpo e fica do lado de fora, como um espectador da própria morte.
São sensações muito, muito ruins. E além da crise em si, eu passei a sofrer por não conseguir identificar os motivos das crises chegarem, o que, consequentemente, tornava mais difícil evitar uma próxima. Quem sofre com esse tipo de situação sabe que a gente sofre não só pela crise, mas também pelo medo de quando virá a próxima.
Depois de muito choro e muitas sessões de análise consegui elaborar um pouco melhor e chegar a algumas hipóteses do que poderia estar desencadeando aquilo tudo.
A principal delas é que eu me coloquei muita pressão para estar bem neste final de ano. Eu fiz a cirurgia de retirada do mioma em setembro. Sofri bastante no pós operatório. Dia 30/09 meu grande amigo Rami faleceu subitamente. E eu fiquei arrasada.
A partir de outubro, eu pensei: ainda faltam 3 meses para terminar o ano. 2023 foi o ano mais difícil da minha vida, mas acho que eu consigo fazer com que ele termine um pouco melhor. Com mais leveza, menos tristeza e mais paz no coração. Só depende de mim.
Também decidi dar um tempo nos assuntos de maternidade, me afastar um pouco para diminuir a intensidade e recuperar fôlego, sabendo que em janeiro começaria um novo capítulo e um novo ano, em que poderíamos retomar as tentativas, e, se Deus quiser, ter uma terceira gestação de sucesso.
E com isso, decidi redirecionar meu foco para a minha carreira e futuro profissional, assunto que tinha ficado em stand by nos meses anteriores. Eu já tinha bastante certeza do que eu não queria mais na minha vida, mas poucas certezas do que eu queria. E sentia que precisava dar foco nisso para descobrir. Foi aí que eu comecei a ler O Caminho do Artista e passar pelas 12 semanas de experiências de redescoberta criativa que ele propõe.
Mas a verdade é que, no fim do dia, o que eu mais queria para esse último trimestre do ano era simplesmente ficar bem. Estar bem. Fazer o que fosse necessário para ficar bem, sem definir exatamente o que "estar bem" significaria, mas sabendo que se eu estivesse bem, eu saberia.
Bem, agora eu sei que não estou. E acho que fui percebendo isso aos poucos nesses últimos meses.
Como sempre, os dias voavam e o fim do ano se aproximava. Já era final de novembro e eu não estava onde gostaria de estar. Não estava como eu gostaria de estar. Seguia preocupada, com medos, ansiosa. O rompimento do ligamento do pé, algo simples comparado com as demais dificuldades do ano, me tirou mais do eixo do que eu gostaria. Eu já vinha ansiosa para retomar os exercícios físicos com mais intensidade - estava há 2 meses sem poder fazer praticamente nada devido ao pós operatório e sentia muita falta. E aí exatamente na semana que eu iria voltar eu caí o tombo. Coincidência, inconsciente ou ironia do destino? Não sei. Mas sei que a falta de endorfina nos últimos 4 meses mexeu muito comigo e tornou todo o resto ainda mais difícil.
Conforme recomendado na segunda crise no hospital, procurei apoio psiquiátrico. Escolhi uma médica super acolhedora, que eu tinha conhecido alguns meses antes justamente porque ela também já passou por perdas gestacionais. Ela está sendo a pessoa perfeita para me acompanhar nesse processo.
Eu sempre tive um certo preconceito com remédios psiquiátricos. Um pouco disso vem da minha família, que é bastante reticente com o assunto, como muitas pessoas por aí. A psiquiatra está sendo muito tranquila e acolhedora, me fez entender a importância e a segurança desses medicamentos. Principalmente entender como lançar mão desse recurso terapêutico poderia me ajudar a no futuro ter uma 3a gestação mais tranquila que as duas primeiras. E me mostrou que eu não precisava sofrer tanto. E ainda bem, minha família entendeu e tem apoiado esse processo.
Mas é claro que só o remédio não é suficiente e nem a solução de todos os problemas. Então nessas últimas semanas eu intensifiquei minhas sessões de análise, estou fazendo 2, às vezes até 3 vezes na semana. Estou precisando mergulhar mais dentro de mim para elaborar melhor meus lutos e lutas. Mas ainda, Paola? O tempo passa, mas a verdade é que o passado das perdas segue no meu presente. Até quando? Acredito que o luto nunca de fato acabe, mas a gente aprende a viver com ele. Para mim, esse aprendizado tem sido a lição mais difícil que eu já tive que enfrentar.
O tempo passa, mas a verdade é que o passado das perdas segue no meu presente. Até quando? Acredito que o luto nunca de fato acabe, mas a gente aprende a viver com ele.
Eu me forcei muito a "estar bem" para o final do ano. Queria estar bem a todo custo, e logo.
A verdade é que a pressa até pode ser amiga da conclusão, naquela vibe do "vamos resolver de uma vez", mas ela é inimiga da elaboração. E tudo que a gente não elabora, não discute, não nomeia, vira trauma. E esse trauma faz a gente viver de passado, não de presente ou futuro. E às vezes, sofrer de ansiedade.
Esse ano foi demais pra mim. Eu não aguentei e transbordei.
Algumas semanas depois do início dessas crises, estou um pouco mais controlada. Tive uma terceira crise, mas já com auxílio dos medicamentos e de alguns exercícios de respiração que eu tinha estudado consegui controlá-la melhor, em casa. A médica me explicou que é provável que eu ainda tenha algumas crises, mas que elas sejam menos intensas. Agora já faz 12 dias da última, e eu espero que a próxima, ainda que possa acontecer, seja de fato mais leve.
Eu também fui liberada pelo médico traumato a retomar exercícios mais intensos como crossfit e corrida, que eu adoro e tem me feito muita falta. Estou animada para voltar a sentir o efeito da endorfina no meu corpo, mas principalmente, na minha mente. Cada vez mais eu vejo como o exercício é muito mais sobre bem-estar de uma maneira ampla do que sobre emagrecimento ou busca de padrões estéticos.

Minha tentativa de controlar tudo, inclusive o que eu sentia, me fez viver os momentos em que eu mais me senti fora do controle na minha vida. O excesso de controle levou ao descontrole. Fui para um extremo muito duro. Mas ainda bem que eu não quis ficar lá.
De imediato, eu travei e nem consegui falar ou expressar o que havia acontecido. Mas aos poucos eu fui entendendo e absorvendo o que aconteceu.
Fico feliz de estar aqui, quase 1 mês depois, conseguindo escrever sobre. Foi difícil, mas consegui elaborar melhor. Esses dias li uma frase de Jesus, o grande aniversariante do mês, que fez muito sentido pra mim e pra esse momento:
"Se você expressar o que habita em você, isso irá salvá-lo. Mas se você não expressar o que habita em você, isso irá destruí-lo".
(Jesus, Evangelho de Tomé).
Dias antes do Natal e depois de mais de um mês sem lançar textos, eu tive que mais uma vez trazer um texto triste e um pouco pesado para cá. Queria que fosse diferente, mas para mim não fazia sentido vir com uma mensagem de luz e esperança, se não é o que estou sentindo no momento. E depois disso tudo, eu não vou mais me forçar a sentir o que eu não estou sentindo.
Então, em 2024, eu vou sentir. O que tiver que ser sentido.
Mas não vou perder a esperança de conseguir, sim, trazer uma versão com mais luz e alegria para a vida e para esses textos.
Feliz Natal, queridos! Obrigada por estarem comigo.
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Eu sempre fui extrovertida, comunicativa e sem muitas vergonhas, no geral - quem me conhece sabe. Mas eu também sempre gostei de me mostrar forte e, como muitas pessoas, muitas vezes colocava uma máscara pra esconder aquelas partes ruins da vida ou de mim mesma. Não gostava de expor minhas falhas ou fraquezas, apesar de saber muito bem que elas existiam…
#13. Afinal, por que uma ex-workaholic (2)?
Esse texto é uma continuação do texto #12, em que fiz um recap da minha carreira, com foco nos 7 anos na indústria tech, e conta os motivos que me levaram a decidir ser uma ex-workaholic. Se você não leu ele ainda e quiser entender mais, vale voltar lá antes de continuar aqui.
#12: Afinal, por que uma ex-workaholic?
Eu comecei a fazer análise em 2017. Na minha primeira sessão, olhei para a minha psicóloga e falei: "eu só queria ficar um pouco doente. Alguma coisa "leve", como uma gripe forte ou até uma pneumonia. Algo que me fizesse ter que descansar por 1 semana, mas que eu me recuperasse logo. Eu só preciso descansar".
Querida, tenho tanto pra te falar, mas me faltam palavras agora, tá foda por aqui também. Mas só quero dizer obrigada, por tua escrita que nos conecta tanto, mesmo não sendo assuntos iguais. E te dou a única certeza que tenho nesses 46 anos de vida: VAI PASSAR. Foca nisso e sente o que tiver que sentir. Muita luz pra vocês! 💕
Pa, sinto muito por tu estar passando por isso. Ansiedade é um monstro invisível e, nós, mulheres práticas e objetivas, temos ainda mais dificuldade de aceitar que algo que a gente não enxerga, não entende de onde vem, nos impacta TANTO. Vai ficar tudo bem, estamos juntas <3